Beatriz da Paixão Cruz
Isaias Cavalcante de Oliveira
Introdução
Lembra-se das mitocôndrias? Todos nós temos. De fato, todas as nossas células têm essas organelas em múltiplas cópias. Estas organelas possuem duas membranas; na interna, as cristas abrigam a cadeia respiratória, onde ocorre a fosforilação oxidativa que produz a maior parte do ATP celular. Seu número varia conforme a demanda energética do tecido, sendo elevadas em cérebro, músculo e coração. Além de gerar energia, participam da sinalização por cálcio, da apoptose e de rotas metabólicas (lipídios, heme, grupos ferro-enxofre). Parte de suas proteínas é codificada pelo próprio DNA mitocondrial (mtDNA), herdado maternamente, e parte pelo DNA nuclear. Quando estas estruturas não funcionam como deveriam, surgem as doenças mitocondriais.
As doenças mitocondriais constituem um grupo heterogêneo de distúrbios genéticos que comprometem a produção de energia celular por meio da fosforilação oxidativa (WANG, et al., 2022). Embora possam afetar praticamente qualquer órgão ou sistema do corpo, resultando em uma ampla gama de sintomas; os sistemas mais frequentemente acometidos são o nervoso, muscular, cardíaco, ocular, endócrino e gastrointestinal, por apresentarem maior conteúdo mitocondrial e alta demanda de ATP.
A Síndrome de Leigh é considerada uma encefalomiopatia mitocondrial neurodegenerativa grave, caracterizada por lesões simétricas em áreas específicas do sistema nervoso central, especialmente no tronco encefálico e nos gânglios da base (LAKE et al., 2015). Essa síndrome afeta principalmente crianças pequenas, mas também pode manifestar-se em adultos.
Figura 1 – Esquema ilustrando uma mitocôndria em (a) e micrografia em (B). As principais estruturas de uma mitocôndria são as duas membranas (externa e interna), o espaço intermembrar (intermembranoso), as cristas mitocondriais, a matriz mitocondrial com o DNA mitocondrial e os ribossomos, que juntas permitem a produção de energia (ATP) através da respiração celular. Adaptado de OpenStax / Wikimedia. Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:0315_Mitochondrion_new.jpg. (Crédito: Isaias Cavalcante de Oliveira)
Histórico
A Síndrome de Leigh foi descrita pela primeira vez em 1951 por Denis Archibald Leigh, que documentou uma encefalopatia necrosante subaguda com padrões lesivos característicos no sistema nervoso central. As encefalopatias englobam várias doenças que alteram o funcionamento e/ou a estrutura do cérebro; nesse caso, observam-se alterações significativas no tronco encefálico, gânglios da base e em outras regiões encefálicas, como o cerebelo, geralmente apresentando desmielinização (dano da bainha de mielina), proliferação vascular (crescimento excessivo e descontrolado de vasos sanguíneos) e gliose, que corresponde a proliferação de células gliais, sendo uma resposta do sistema nervoso central a doença (KARTIKASALWAH; NGU, 2010).
Figura 2 – Representação esquemática do cérebro, tronco encefálico e gânglios (núcleos) da base. Os gânglios se localizam profundamente nos hemisférios cerebrais, incluindo partes do lobo frontal, parietal e temporal, e estão envolvidos em diversas funções como controle de movimentos voluntários, o aprendizado, a emoção e outras funções cognitivas. Legenda: No cérebro e tronco (à esquerda), LF = lóbulo frontal; LP = lóbulo parietal; LT = lóbulo temporal; LO = lóbulo occipital; CE = cerebelo; Mes = Mesencéfalo. À direita há um destaque para os gânglios da base, onde o maior componente é o corpo estriado, que contém os núcleos caudado e lenticular (putâmen, globo pálido), o núcleo subtalâmico (não representado) e a substância negra (S. nigra). (Crédito: Isaias Cavalcante de Oliveira)
Desde então, avanços na genética e na biologia mitocondrial permitiram a identificação de diferentes mutações associadas à doença, tanto no DNA nuclear (nDNA) quanto no DNA mitocondrial (mtDNA). Atualmente, a síndrome é reconhecida como uma das manifestações mais graves entre as doenças mitocondriais (YLIKALLIO; SUOMALAINEN, 2012). Mas, por que essas disfunções mitocondriais podem ser tão graves? E como elas são herdadas? Veremos a seguir.
Causas
As doenças mitocondriais são, em sua maioria, causadas por mutações que afetem os genes responsáveis pela cadeia respiratória mitocondrial, processo essencial para a produção de ATP (NASSEH et al., 2001). No caso da Síndrome de Leigh, essas mutações afetam, com maior frequência, complexos enzimáticos da cadeia de transporte de elétrons (principalmente os complexos I, IV e V) (LAKE et al., 2015). As mutações podem ocorrer tanto em genes do mtDNA quanto nDNA e podem apresentar herança materna, autossômica recessiva, ligada ao cromossomo X ou até mesmo surgir espontaneamente (de novo).
A maioria dos casos ocorre por mutações no mtDNA, e, portanto, a herança materna é predominante nesse contexto. Cada mitocôndria pode conter várias moléculas de DNA e as células podem ter várias mitocôndrias. Sendo assim, quando existe uma mutação no mtDNA, a célula pode apresentar todo seu mtDNA mutado ou todo o seu mtDNA normal, o que chamamos de homoplasmia; ou pode apresentar uma mistura dos dois tipos de mtDNA, mutado e normal, condição denominada de heteroplasmia. Agora, pensando no DNA nuclear, fica a pergunta: como mutações no DNA nuclear afetam a mitocôndria se ela tem seu próprio DNA? A resposta é simples. As mitocôndrias são reguladas por mais de 1000 genes localizados no núcleo da célula, que também codifica boa parte das subunidades dos complexos respiratórios. Isso nos indica que a produção de energia na mitocôndria, por meio da cadeia respiratória, depende de proteínas codificadas tanto pelo mtDNA quanto pelo DNA nuclear, havendo importante “comunicação” entre eles (NASSEH et al., 2001; WEN et al., 2025).
Entre os genes mais comumente afetados estão o gene nuclear NDUFS4, cujas mutações prejudicam diretamente a função do complexo I, MT-ATP6, associado à disfunção do complexo V (ATP sintase), e o SURF1, que interfere na montagem do complexo IV (YLIKALLIO; SUOMALAINEN, 2012). A falência na produção de energia compromete gravemente tecidos de alta demanda metabólica, como o cérebro e os músculos (WANG, et al., 2022). Celularmente também pode ser observado estresse no retículo endoplasmático e deficiências em fatores essenciais, como cofatores ou vias metabólicas importantes para a produção de energia (WEN et al., 2025).
Sintomas
Os sintomas da Síndrome de Leigh variam conforme a idade de início, a mutação envolvida e, sobretudo, a proporção de mtDNA mutado (heteroplasmia) e sua distribuição tecidual. Em geral incluem:
- Atraso do desenvolvimento psicomotor;
- Hipotonia (diminuição do tônus muscular);
- Distúrbios respiratórios;
- Crises epilépticas;
- Oftalmoplegia (paralisia ou fraqueza dos músculos oculares);
- Acidose láctica (acúmulo excessivo de ácido láctico no sangue);
- Lesões bilaterais simétricas em núcleos da base e/ou tronco encefálico visíveis por ressonância magnética;
Com a progressão da doença, há perda de habilidades motoras, disfunções neurológicas graves e, frequentemente, falência respiratória, principal causa de óbito nos casos pediátricos (LAKE et al., 2015).
Outras Doenças Mitocondriais
Além da Síndrome de Leigh, há outras patologias relacionadas a disfunções mitocondriais, como:
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MELAS (Encefalopatia mitocondrial, acidose láctica e episódios semelhantes a AVC): Doença multissistêmica que afeta o cérebro e os músculos, com crises epilépticas, cefaleia e episódios similares à acidente vascular encefálico em jovens (WANG, et al., 2022). É herdada maternalmente e as mutações geralmente afetam RNAs transportadores mitocondriais, comprometendo a tradução mitocondrial e a montagem/atividade de complexos da cadeia respiratória, especialmente os complexos I e IV (WEN et al., 2025).
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MERRF (Epilepsia mioclônica com fibras vermelhas rasgadas): caracterizada por mioclonias (espasmos musculares repentinos e involuntários), ataxia (perdas de coordenação motora) e presença de fibras musculares anômalas, confirmadas por biópsias. Afeta principalmente os complexos I e IV, resultando em disfunção mitocondrial e aumento na quantidade de radicais livres. Assim como a MELAS envolve mutações em genes que codificam para RNAs transportadores mitocondriais (WEN et al., 2025).
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LHON (Neuropatia óptica hereditária de Leber): causa perda súbita da visão central, devido à degeneração das células ganglionares da retina que necessitam de bastante energia para funcionar, e tem maior prevalência em especialmente em jovens do sexo masculino (NASSEH et al., 2001, WANG, et al., 2022). A maioria das mutações ocorre nos genes relacionados ao complexo I (MT-ND1 , MT-ND4 e MT-ND6). (WEN et al., 2025).
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Síndrome de Alpers-Huttenlocher: uma encefalopatia progressiva com hepatopatia (danos no fígado), astrocitose (aumento anormal do número de astrócitos), convulsões intratáveis e degeneração cerebral, geralmente em crianças pequenas. Diferentemente das anteriores, é causada por mutações no DNA nuclear. As mutações são autossômicas e as mais comuns acometem o gene POLG2 que codifica a DNA polimerase gama, uma enzima essencial para a replicação e reparo do DNA mitocondrial. Mutações neste gene causam distúrbios mitocondriais hereditários, que resultam na diminuição da quantidade de mtDNA, afetando a produção de energia celular (WEN et al., 2025). Interessantemente, mutações recessivas (homozigotas) tendem a ser mais brandas e de início mais tardio (17 a 24 anos), ao contrário das mutações heterozigotas associadas a um fenótipo mais grave e de início mais precoce (2 e 4 anos).
Tratamento e perspectivas futuras
As doenças mitocondriais, incluindo a Síndrome de Leigh, não possuem cura; e o tratamento é basicamente sintomático e de suporte (LAKE et al., 2015). A abordagem terapêutica pode incluir:
- Suplementação com coenzima Q10, L-carnitina, tiamina e outras vitaminas do complexo B (moléculas importantes para metabolismo e produção de energia);
- Suplementação calórica e nutricional e terapia alimentar conforme necessário;
- Também é importante evitar medicamentos e toxinas com efeitos mitocondriais adversos, como certos antibióticos, aminoglicosídeos, cigarros e álcool;
- Controle de crises convulsivas com anticonvulsivantes;
- Cuidados intensivos para disfunções respiratórias e metabólicas;
- Fisioterapia e reabilitação para atraso motor;
- Apoio psicológico e promoção de cuidados para o indivíduo e a família afetados.
Atualmente, embora não tão acessíveis ainda, a terapia de reposição mitocondrial (TRM) e a terapia gênica têm se mostrado abordagens promissoras para o tratamento de doenças genéticas mitocondriais e representam um avanço significativo na área. Na primeira, o DNA mitocondrial defeituoso é substituído por mtDNA saudável de uma doadora. Pode ser realizada de duas formas: por transferência do fuso materno (TFM), onde o núcleo do óvulo da mãe é transferido para um óvulo de uma doadora sem mutações, antes da fertilização, herdando o DNA nuclear da mãe e as mitocôndrias saudáveis da doadora. Ou pode acontecer por transferência pronuclear (PNT), que ocorre após a fertilização, onde os pronúcleos (que contêm o DNA nuclear da mãe e do pai) são transferidos de dois zigotos fertilizados (um da mãe e um doador) para um novo zigoto enucleado que contém as mitocôndrias saudáveis do óvulo da doadora, utilizando os pronúcleos da mãe e do pai.
Já o segundo caso envolve a edição de genes (via CRISPR) e também terapias com células-tronco, como doação de células saudáveis, “despertamento” de células satélites musculares ou utilizar células-tronco pluripotentes induzidas, por exemplo. Também, bons resultados têm sido observados com “expressão alotópica” em modelos experimentais. Basicamente essa estratégia envolve a transferência de um gene mitocondrial editado para o núcleo da célula, produzindo então a proteína correspondente no citoplasma e direcionando-a para a mitocôndria para integração funcional. Por fim, há uma grande pesquisa sobre fármacos moduladores da função mitocondrial visando melhorar a biogênese mitocondrial, a dinâmica e a função.
A identificação precoce, o aconselhamento genético e o suporte multidisciplinar são essenciais para melhorar a qualidade de vida dos pacientes, ainda que o prognóstico continue reservado na maioria dos casos (WANG, et al., 2022).
Conclusão
As disfunções mitocondriais constituem um campo complexo da medicina genética, com sintomas que afetam muitos sistemas do corpo manifestações multisistêmicas e apresentam ampla variabilidade fenotípica. A Síndrome de Leigh destaca-se como uma das manifestações mais severas e precoces, exigindo atenção clínica especializada e investigação genética detalhada (LAKE et al., 2015). A compreensão dessas patologias tem avançado consideravelmente nas últimas décadas, mas ainda são necessários mais estudos para o desenvolvimento de terapias efetivas (YLIKALLIO; SUOMALAINEN, 2012).
Referências
- HAMEED, S.; TADI, P. Myoclonic Epilepsy and Ragged Red Fibers (MERF). Atualizado em 16 jul 2023. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK555923/
- LAKE, Nicole J. et al. Leigh syndrome: neuropathology and pathogenesis. Journal of Neuropathology & Experimental Neurology, v. 74, n. 6, p. 482-492, jun. 2015. DOI: https://doi.org/10.1097/NEN.0000000000000195
- KARTIKASALWAH, A.; NGU, L. Leigh syndrome: MRI findings in two children. Biomedical Imaging and Intervention Journal, v. 6, n. 1, jan. 2010. Doi: 10.2349/biij.6.1.e6
- NASSEH, I. E. et al. Doenças Mitocondriais. Revista Neurociências, v. 9, n. 2, p. 60–69, 2001. https://periodicos.unifesp.br/index.php/neurociencias/article/view/8921/6454
- ROSE, H. R.; AL KHALILI, Y. Alpers-Huttenlocher Syndrome. Atualizado em 14 ago 2023. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK540966/
- YLIKALLIO, E., & SUOMALAINEN, A. (2011). Mechanisms of mitochondrial diseases. Annals of Medicine, 44(1), 41–59. https://doi.org/10.3109/07853890.2011.598547
- WANG L, YANG Z, He X, et al. Mitochondrial protein dysfunction in pathogenesis of neurological diseases. Front Mol Neurosci. 2022;15:974480. Published 2022 Sep 7. doi:10.3389/fnmol.2022.974480
- WEN, H. et al. Mitochondrial diseases: from molecular mechanisms to therapeutic advances. Signal Transduction and Targeted Therapy, v. 10, n. 1, 9 jan. 2025. https://doi.org/10.1038/s41392-024-02044-3
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