Retículos Celulares

Arthur Tributino Menezes

Procariotos X eucariotos

Ao compararmos células procarióticas e eucarióticas, logo notamos uma grande diferença em sua composição e organização. A principal diferença entre esses dois tipos celulares é a compartimentalização, ou seja, a organização de suas estruturas internas em compartimentos, os quais apresentam funções específicas. Tal organização é observada nas células eucarióticas, a qual possui organelas membranosas, como mitocôndrias, complexo de Golgi, e retículo endoplasmático. As células procarióticas são mais simples em sua estrutura, de modo que não apresentam as organelas citadas.

Essa diferença despertou a curiosidade dos cientistas, afinal, como podem existir organismos que adotam estratégias tão distintas para sobreviver?! Seria alguma das duas estratégias melhor do que a outra?! E sobretudo, como surgiram tais estratégias, e por qual motivo?!

Na breve comparação que fizemos talvez já possam surgir algumas especulações para tentarmos responder às questões propostas acima. Facilmente, alguém logo pensaria: “bom, as células eucarióticas são mais “equipadas” que as procarióticas, e têm todas aquelas especializações e tudo mais. É como se elas fossem uma versão “atualizada” e melhorada das células procarióticas, já que podem fazer mais coisas”.

Tal pensamento já nos desperta algumas ideias interessantes, como por exemplo, a ideia de que as células eucarióticas são uma “atualização” das procarióticas, o que implica que as procarióticas são mais antigas. Mas o que há de interessante nisso?!

Bom, se estamos tratando de estudar grupos de organismos vivos distintos, e começamos a perceber certa semelhança entre eles, rapidamente pensamos em evolução, e tentamos estabelecer relações entre esses grupos para compreender melhor a sua história.

De fato, acredita-se atualmente que as células eucarióticas surgiram à partir de um upgrade das células procarióticas, e alguns mecanismos foram propostos para explicar como isso pode ter acontecido.

Para entendermos de um modo geral, comecemos por imaginar um procarioto em seu habitat. Trata-se de uma célula simples, composta basicamente por membrana plasmática, citoplasma e núcleo, além de ribossomos para a tradução de proteínas. Esse organismo obtém tudo o que necessita do meio externo que o circunda, porém, alguns destes elementos precisam ser processados antes de poderem ser utilizados pelo organismo. Sendo assim, o organismo passa a processar esses elementos no meio externo antes de incorporá-los. E como ele faz isso?!

Uma estratégia seria secretar enzimas digestivas para quebrar esses elementos no meio extracelular, e assim convertê-los em elementos assimiláveis pela célula. Tais elementos poderiam ser, por exemplo, proteínas, as quais o organismo digere no meio extracelular através de suas enzimas, de modo que possa assimilar os aminoácidos resultantes da digestão. Essa é a estratégia adotada pelo nosso organismo hipotético. Agora, ele pode contar com os nutrientes e substâncias necessárias para a síntese de suas proteínas e demais componentes, e viver a sua vida.

No entanto, em um ambiente com tantos nutrientes e substâncias disponíveis, é natural que outros organismos como o do nosso exemplo surjam e se multipliquem, de tal maneira que a disponibilidade dos elementos no meio vai sendo reduzida. Nesse novo cenário, passam a ser selecionados os indivíduos que adotam estratégias que lhes confiram certa vantagem sobre os demais. Pois bem, imaginemos agora que alguns desses organismos passem a internalizar as grandes moléculas do meio externo, e digerí-las em vesículas intracelulares. Esta nova estratégia é vantajosa no sentido de que os produtos da digestão destas moléculas estarão disponíveis somente para as células que os digeriram, já que tudo passa a ocorrer no interior da própria célula. Podemos pensar agora que essas novas células, que adquiriram a capacidade de fazer esta digestão intracelular, se saem melhor no ambiente considerado do que as células que não têm essa capacidade. Desse modo, espera-se que as novas células se reproduzam com maior eficiência do que as outras, e passem a ser maioria nesse ambiente. Assim, tal modificação se perpetua ao longo das gerações, até o ponto em que praticamente toda a população existente agora faça a digestão intracelular.

Essa breve consideração sobre um organismo hipotético, nos dá uma ideia geral sobre o que se acredita hoje em dia acerca do surgimento dos organismos eucarióticos. Há detalhes específicos em teorias que tentam explicar o surgimento de cada organela, desde as mitocôndrias, cloroplastos (presentes em células vegetais), complexo de Golgi, núcleo e Retículo endoplasmático. Neste texto, trataremos especificamente do retículo endoplasmático: sua função, organização, dinâmica, e outros pontos relacionados a essa organela.

 

Organização em compartimentos

 

A compartimentalização celular, ou seja, a organização de estruturas intracelulares específicas em compartimentos, permite às células eucarióticas a otimização de determinados processos. A quantidade das diferentes organelas e a sua localização no citoplasma varia de acordo com a função da célula.

 

Dentre as vantagens da compartimentalização, podem-se citar:

 

  • seletividade no tráfego de substâncias através de uma membrana semipermeável;
  • concentração de determinadas substâncias envolvidas em um mesmo espaço, para otimizar as reações químicas;
  • controle local do pH, inclusive permitindo a criação de um pH específico muito diferente ao do citoplasma da célula, o que pode definir a atividade de determinadas enzimas;
  • proteção da célula (aprisionamento de enzimas degradativas e oxidativas; substâncias sinalizadoras de morte celular, entre outras)

 

A divisão do trabalho no interior da célula traz vantagens, mas também desafios quanto à coordenação das atividades celulares, biossíntese de organelas e divisão celular.

 

Retículo Endoplasmático (RE)

 

Acredita-se que o retículo endoplasmático (RE) tenha surgido da invaginação de porções específicas da membrana plasmática em um organismo ancestral. Essas porções da membrana apresentariam estruturas necessárias à síntese de lipídios e translocação de proteínas, funções estas desempenhadas pelo RE nas células eucarióticas recentes.

O próprio nome dessa organela já nos traz algumas informações sobre ela: retículo = rede; endoplasmático = dentro do citoplasma da célula. Assim, o RE é uma rede de cisternas (ou sáculos) presente no interior de células eucarióticas (Figura 1). Parte do RE é contínua com a carioteca (membrana do núcleo da célula), e em alguns casos há também uma parte contínua com o Complexo de Golgi.

<a href="https://commons.wikimedia.org/wiki/File:0313_Endoplasmic_Reticulum.jpg">OpenStax</a>, <a href="https://creativecommons.org/licenses/by/4.0">CC BY 4.0</a>, via Wikimedia Commons

Figura 1 – a) Organização do Retículo Endoplasmático, uma rede de cisternas membranosas contínuas com o núcleo. É possível distinguir o retículo endoplasmático rugoso e o liso tanto por aspectos morfológicos como funcionais. b) Microscopia eletrônica de transmissão (aumento de 110.000X) evidenciando uma região do retículo endoplasmático rugoso, note os diversos ribossomos associados à sua membrana, indicando atividade de síntese proteica com liberação diretamente no lúmen do retículo. c) Microscopia eletrônica de transmissão (aumento de 110.510X) evidenciando uma região do retículo endoplasmático liso.

Adaptado de OpenStax, CC BY 4.0, via Wikimedia Commons

Podemos distinguir dois tipos de REs: RE liso (REL) e RE rugoso (RER). Como o próprio nome sugere, a diferença básica entre esses dois tipos de REs está em sua aparência: um deles tem a aparência “lisa” e o outro “rugosa”. E como podemos saber qual a aparência de um RE???

Isso é possível graças a técnicas de microscopia. O RER , visto em corte, assemelha-se a uma rede de tubos com pequenas esferas aderidas ao longo de toda a sua superfície. Essas pequenas esferas são ribossomos, os quais também se encontram espalhados por todo o citoplasma da célula. Assim, os ribossomos dão uma aparência “rugosa” a esse retículo. Já o REL não possui os ribossomos aderidos à sua superfície, apresentando uma aparência “lisa”, daí o seu nome. Outra diferença entre eles é que o RER é uma rede de tubos achatados, enquanto que o REL em geral apresenta-se como uma rede de tubos arredondados (Figura 1).

Na verdade, os dois tipos de retículos do qual falamos fazem parte de uma mesma organela com porções distintas. Mesmo em células onde estão separados, eles têm uma origem comum.

 

Funções dos retículos

 

Cada tipo de RE desempenha funções próprias. Células que tenham um metabolismo relacionado à alta produção de proteínas terão um RER mais abundante, enquanto que células com funções que envolvam a produção de grandes quantidades de gordura e hormônios esteroides, bem como funções de detoxificação, apresentarão um REL predominante.

 

O RER é responsável pelo dobramento correto de algumas proteínas, e o seu transporte em vesículas para o complexo de Golgi.

Sabendo que o RER é recoberto por ribossomos, já poderíamos associar a sua função com a produção de proteínas. Os RNAs mensageiros, que contém as informações para a síntese das proteínas, são traduzidos pelos ribossomos de modo que a proteína é produzida no lúmen do RER. No interior desta organela, a proteína estará em um ambiente com condições propícias de pH e concentração de substâncias ideal para que seja feito o seu dobramento correto. Podem ocorrer ainda modificações pós-traducionais, como por exemplo, glicosilações (adição de carboidratos na estrutura da proteína).

Além disso, o RER possui um sistema de controle de qualidade para checar o correto dobramento das proteínas produzidas. Se alguma proteína é produzida com defeito, a mesma é direcionada para degradação e reaproveitamento de seus componentes. Defeitos nessa maquinaria de controle de qualidade já foram associados com o desenvolvimento de doenças, como a fibrose cística. O indivíduo portador desta doença apresenta uma mutação que o leva a produzir uma determinada proteína com um único aminoácido trocado em sua estrutura. Tal proteína, mesmo com esta alteração, seria funcional para o indivíduo, porém, devido ao rígido controle de qualidade do RER, as proteínas produzidas com essa alteração são degradadas, de modo que o indivíduo passa a sofrer as consequências da falta dela. O portador dessa doença apresenta alterações na produção de suor, sucos digestivos e mucos, o que leva a problemas que afetam o sistema respiratório, digestivo e até o sistema reprodutor.

 

No REL ocorre a síntese de fosfolipídeos, esteroides e gorduras. Esta organela se encontra mais espalhada pelo citoplasma da célula, enquanto o RER se concentra nas proximidades do núcleo e Complexo de Golgi.

Nas células do fígado, o REL também atua na ativação do glicogênio armazenado para a sua quebra em glicose. Além disso, esta organela tem um importante papel na detoxificação do organismo, convertendo substâncias tóxicas em produtos solúveis em água, de modo que estes possam ser removidos de forma segura sem causar danos às células. Tais substâncias tóxicas podem ser provenientes do metabolismo natural do organismo, ou ainda serem de origem externa, como bebidas alcoólicas e algumas drogas. O consumo excessivo de bebidas alcoólicas e o abuso de drogas leva a produção de substâncias nocivas ao organismo, às quais são enviadas ao fígado para serem metabolizadas. Em situações assim, o REL pode dobrar de tamanho no interior dos hepatócitos em poucos dias, a fim de metabolizar rapidamente essas substâncias, e em seguida retornar ao seu tamanho normal.

O REL ainda serve de local para armazenamento de cálcio, o qual é liberado durante as contrações musculares.

 

O RE e a divisão celular

 

Como bem sabemos, durante a divisão celular, a célula precisa duplicar alguns de seus componentes para depois distribuí-los entre as duas células filhas. Esse processo ocorre, por exemplo, com o material genético (DNA), e as mitocôndrias.

No caso do RE o processo é outro. Durante a divisão celular, o RE se desfaz, sendo que partes dele são preservadas na forma de vesículas contendo algumas estruturas originais em suas membranas, como proteínas de transporte específicas. Essas vesículas são distribuídas entre as células filhas, e dão origem aos novos retículos endoplasmáticos que irão se formar nestas células posteriormente.

 

Interações com outras organelas

 

O retículo endoplasmático é contínuo com o núcleo e pode, em alguns casos, fazer contato com diferentes organelas celulares, como mitocôndrias e complexo de Golgi, chegando até a membrana plasmática. Este contato não é meramente físico, de modo que pode ocorrer intercâmbio de determinados elementos entre as organelas envolvidas. Um exemplo é o que ocorre na morte celular programada sinalizada por cálcio. Proteínas sinalizadoras, localizadas em regiões de contato entre o RE e mitocôndrias, induzem a liberação de cálcio pelo RE e a entrada deste mesmo elemento nas mitocôndrias. O influxo de cálcio nas mitocôndrias é um dos mecanismos que leva a morte celular programada.

 

Links interessantes

Vídeo-aula sobre retículo endoplasmático e complexo de Golgi:

Vídeo-aula sobre retículo endoplasmático liso:

Vídeo-aula sobre retículo endoplasmático rugoso:

Site com informações sobre fibrose cística:

https://unidospelavida.org.br/fibrose-cistica/

Referências

 

 

  • Lebiedzinska, M. et al. (2009) Interactions between the endoplasmic reticulum, mitochondria, plasma membrane and other subcellular organelles. The International Journal of Biochemistry & Cell Biology, Volume 41, Issue 10, October 2009, Pages 1805-1816, ISSN 1357-2725

 

  • Pollard, et al. 2006. Biologia celular. 1ª ed. Elsevier.

 

  • Zhang L, Wang Y, Pandupuspitasari NS, et al. Endoplasmic reticulum stress, a new wrestler, in the pathogenesis of idiopathic pulmonary fibrosis. American Journal of Translational Research. 2017;9(2):722-735.