Células-tronco

Isaias Cavalcante de Oliveira

Introdução

Um dos conceitos mais conhecidos da biologia é a de que todos os seres vivos são compostos por células, a unidade estrutural e organizacional básica de todos os organismos, e que todas as células vêm de células preexistentes (É a Teoria Celular, conhecida desde o século XIX). Os seres vivos pluricelulares, como nós, são os seres constituídos por diversas células e que tem diferenciação entre elas, possibilitando que estas possam formar tecidos, órgãos, e sistemas. Mas você já parou pra pensar como um organismo pluricelular é constituído de diferentes tecidos se bem no início do desenvolvimento embrionário todas as células são morfologicamente semelhantes entre si? É porque estas células seguem destinos diferentes e gradualmente expressam potencialidades distintas e, com isso, adquirindo estruturas e funções específicas. Todas as células possuem os mesmos genes, porém ao longo do desenvolvimento vão expressando diferentes partes do genoma.

Basicamente, a definição de célula-tronco (stem cell em inglês) está relacionada a duas características: (1) células que apresentam a capacidade de auto renovação (geram células filhas idênticas em forma e função a si próprias), mantendo seu estado indiferenciado; (2) apresentam grande capacidade de diferenciação, ou seja, podem tornar-se outros (todos, muitos ou alguns) tipos celulares. Podemos dizer também que quanto maior for a potencialidade da célula (capacidade que a célula tem de originar outros tipos celulares) menor será a diferenciação (grau de especialização da célula), sendo que o contrário também é valido. Geralmente, entre uma célula-tronco e suas derivadas totalmente diferenciadas existe uma população de células intermediárias denominadas células amplificadoras transitórias. Estas células possuem uma capacidade de multiplicação mais limitada e um potencial de diferenciação restrito e nos ajudam a entender como um tecido pode manter uma produção elevada de células diferenciadas a partir de um pequeno número de células-tronco. Podemos dividir as células-tronco em dois grupos, como veremos a seguir: as células-tronco embrionárias e as células-tronco adultas. Para entender melhor tais características podemos partir de algumas etapas da embriogênese.

 

Embriogênese: Células-tronco embrionárias e diferenciação celular

Depois da fecundação, após a formação do zigoto (embrião), ocorre um processo denominado clivagem onde o embrião sofre divisões mitóticas sucessivas muito rapidamente aumentando o número de células que o compõem, sem necessariamente alterar o tamanho total do embrião. Nesta etapa os processos de transcrição ficam temporariamente inibidos e o embrião acaba por dividir entre as células-filhas as moléculas de RNA e demais substâncias já existentes no citoplasma do ovócito desde a oogênese, isso porque as fases G1 e G2 (onde ocorre intensa síntese de RNA e proteína) são omitidas e o tamanho das células-filhas diminui progressivamente a cada divisão celular. Havendo um número suficiente de células, as divisões continuam ocorrendo, porém em um ritmo menos acelerado e dá-se início à gastrulação. Em vertebrados, especialmente os mamíferos, as células resultantes da clivagem são chamadas de blastômeros. Alguns dias após a fecundação formam-se a mórula, o primeiro estágio do desenvolvimento embrionário, composta por cerca de 12 a 32 blastômeros, com algumas células internas rodeadas por um número superior de células externas, formando uma massa compacta semelhante a uma amora, de onde origina o nome. Nesse estágio, as células que a formam são células totipotentes, desse modo, têm potencial para originar quaisquer tipos celulares até mesmo as células do folheto extraembrionário. Porém, estas células tem um ciclo de vida curto e desaparecem em poucos dias. Por que isso acontece?

Quando a mórula chega ao útero ocorre uma grande reorganização das células que começam a ocupar a periferia e surge em seu interior uma cavidade, conhecida como blastocele. O interior dessa cavidade é preenchido por fluido, originado do útero e nesse momento, o embrião deixa de ser chamado de mórula e passa a ser chamado de blástula. Nos mamíferos a blástula recebe o nome de blastocisto com um embrioblasto (ou massa celular interna) que dará origem às estruturas definitivas do feto, e um trofoblasto (trofo-ectoderma) que formará os tecidos extraembrionários, como a placenta que irá nutrir o embrião e permitir trocas (nutrientes, gases e secreções), entre a circulação materna e a circulação do feto. As células do embrioblasto são ditas células tronco pluripotentes sendo capazes de se diferenciarem em todos os tipos celulares do organismo (as que vão formar os tecidos do sangue, músculo, ósseo, cartilagem, e outros). Contudo, não são capazes de gerar as células da porção fetal da placenta como os blastômeros (totipotentes).

Figura 1 – Representação Simplificada da Embriogênese Animal (Crédito: Isaias Cavalcante de Oliveira)

Após diversas alterações o embrião finalmente chega ao estado de gástrula. Nesta fase em que a diferenciação das células começa a ocorrer são observadas intensas movimentações  celulares (movimentos morfogenéticos) formando os três folhetos embrionários (ou folhetos germinativos): ectoderme, mesoderme e endoderme. Os processos de transcrição e expressão gênica a partir do genoma zigótico (tanto materno quanto paterno), começam a ocorrer e uma intensa comunicação entre as células, e estas com a matriz extracelular, é fundamental para coordenar a organização do corpo do embrião. Em aves e mamíferos (e também répteis) forma-se a linha primitiva, que é um acúmulo de células do epiblasto e sua extremidade anterior forma o nó primitivo (nó de Hensen), onde é possível identificar um eixo cefálico-caudal (anterior-posterior). A partir das células da linha primitiva origina-se a mesoderme (mesênquima) e endoderme. O epiblasto também origina a ectoderme e o âmnio. Uma parte das células migratórias se une ao hipoblasto e formam os anexos extraembrionários (saco vitelino e cório).

Ainda, ocorre a neurulação – que não será visto aqui em detalhes –, que corresponde ao processo que dará origem ao sistema nervoso do embrião (a partir da ectoderme), que nesse estágio, é conhecido como nêurula. Esse processo é estimulado pela notocorda, que começa a se formar nas fases finais da gastrulação (a partir da mesoderme).

Figura 2 – Embriogênese em Aves e Mamíferos. Durante a gastrulação a linha primitiva aumenta de comprimento a partir do nó de Hensen na região anterior possibilitando que as células do epiblasto migrem para a blastocele. Ao final, o epiblasto dá origem a ectoderme e as células que migraram formam a mesoderme e a endoderme. (Baseado em JUNQUEIRA & CARNEIRO, 2012). (Crédito: Isaias Cavalcante de Oliveira)

Células-tronco adultas

Como você deve imaginar nosso corpo está constantemente se reparando e repondo células que morreram. Isso se deve as células-tronco adultas que são encontradas em vários órgãos e tecidos no indivíduo adulto e em geral, já expressam genes específicos que determinam seus destinos (genes marcadores), conforme os tecidos em que estão localizadas. Vamos ver alguns exemplos.

Células-Tronco Epiteliais

As células-tronco da epiderme produzem células que se diferenciam formando as células epiteliais queratinizadas características do tecido epitelial que entre outras funções está relacionado ao revestimento da pele. Tais células têm um ciclo celular lento, elevado potencial proliferativo e longo ciclo de vida. Ao que tudo indica estas células estão localizadas em estruturas chamadas “unidades proliferativas”, compostas por algumas células-tronco encarregadas de suprir o compartimento de células diferenciadas. Isso permite que as células em divisão estejam em um determinado local, e as diferenciadas em outro. Por quê? Para tornar o processo de reposição “eficiente” e não permitir que tais células-tronco fiquem tão expostas a estressores externos (ou internos). Há também a hipótese de que devem existir células-tronco facultativas, que podem atuar como células-tronco quando necessário, mas nem sempre o fazem.

Células-Tronco Intestinais

Outro exemplo muito interessante são as células-tronco do epitélio intestinal, que consiste num epitélio com uma única camada, com apenas uma célula de espessura. Esse epitélio recobre as superfícies das vilosidades que se projetam em direção ao lúmen e reveste as criptas – glândulas tubulares simples – que se projetam, “afundam”, no tecido conjuntivo subjacente. As células em divisões ficam restritas às criptas, e células diferenciadas, que não se dividem, propagam-se das criptas para as vilosidades em um fluxo contínuo. Há quatro tipos principais de células diferenciadas que não se dividem – uma absortiva (ou enterócito, uma célula com borda em escova) e três secretoras (células caliciformes, células de Paneth, células enteroendócrinas). Experimentos utilizando pulsos de timidina tritiada (um nucleosídeo do DNA contendo um isótopo radioativo de hidrogênio – 3H) ou de um análogo que possa ser detectado em cortes histológicos mostram que na cripta intestinal, as células-tronco ficam situadas próximas à sua base, e as células amplificadoras transitórias (aquelas derivadas, mas já comprometidas com a diferenciação), provavelmente, nos dois terços do comprimento da cripta. Finalmente, na porção superior da cripta e nas vilosidades, fica a linhagem celular diferenciada.

A exceção aqui são as células de Paneth – células do sistema imune que secretam alguns fatores de crescimento e proteínas que matam bactérias – que são produzidas em menor número nas criptas e migram de forma diferente, permanecendo na base das criptas (por várias semanas, em camundongos, antes de sofrerem apoptose). Interessantemente, são células que secretam um conjunto de moléculas – no caso, glicoproteínas – chamadas de sinal Wnt importantes na gastrulação e que somados a proteínas sinalizadoras do tecido conjuntivo mantém o estado indiferenciado das célula-tronco. Os sinais Wnt são modulados por proteínas do gene Apc (cuja mutação leva à polipose adenomatosa do cólon, um tipo de tumor intestinal). Outras moléculas importantes na sinalização incluem os receptores contendo repetições ricas em leucina (LGR), acoplados à proteína G, com destaque para o LGR5 cuja proteína transmembranar (receptora de R-espondinas) desempenha um papel na formação e manutenção de células-tronco intestinais adultas. A super-expressão de LGR5 pode levar ao surgimento de células-tronco cancerosas, levando a doenças como o câncer gástrico e colorretal, e embora seja bem característico das células intestinais é encontrado também em células-tronco foliculares e gliomas – tipo comum de tumor que se origina no cérebro – desempenhando funções no desenvolvimento neuronal.

Tanto as células-tronco da epiderme como as do intestino por terem um potencial de diferenciação mais restrito que as células-tronco embrionárias, são classificadas como multipotentes.

Figura 3 – Esquema simplificado mostrando a hierarquia de Células-tronco. (Crédito: Isaias Cavalcante de Oliveira)

Células-Tronco Hemocitopoéticas

A célula-tronco hemocitopoética é considerada por muitos autores como multipotente (embora em algumas pesquisas sejam consideradas pluripotentes), dando origem a todos os tipos de células sanguíneas diferenciadas como as hemácias ou até mesmo os osteoclastos no osso, sendo o sistema hemocitopoético o mais complexo dos sistemas de células-tronco dos mamíferos. Tais células são conhecidas e estudadas a mais de 50 anos e tem tido uma grande aplicabilidade na medicina como, por exemplo, no transplante de células hemocitopoéticas em substituição ao transplante de medula óssea, no tratamento de doenças autoimunes, entre outros.

Como você conhece, as células sanguíneas podem ser classificadas como vermelhas ou eritrócitos (hemácias), que circulam dentro dos vasos sanguíneos e são carregadas de hemoglobina, transportando O2 e CO2 ou células brancas também chamadas de leucócitos, que fazem parte do sistema imunológico combatendo infecções e em alguns casos, realizando a fagocitose e eliminação de detritos. Tais leucócitos, podem se movimentar atravessando as paredes de pequenos vasos sanguíneos e migrar para os tecidos para desempenhar suas tarefas num processo conhecido como diapedese. Ainda, o sangue contém grande número de plaquetas, envolvidas na coagulação sanguínea e que são fragmentos derivados do citoplasma de grande células grandes denominadas de megacariócitos. Durante o amadurecimento todos os eritrócitos e as plaquetas permanecem em uma única classe ou grupo, seguindo a mesma trajetória de desenvolvimento enquanto que há muitos tipos de leucócitos, geralmente agrupados em três categorias principais: granulócitos (neutrófilos, eosinófilos e basófilos), monócitos e linfócitos.

As células sanguíneas em desenvolvimento e seus precursores, incluindo as células-tronco, estão misturadas umas com as outras e com algumas células do tecido conjuntivo e devido à complexidade da organização destas células na medula óssea, fica difícil sua identificação, com exceção da precursoras imediatas. Parte das técnicas usadas no reconhecimento destas células – como na identificação de antígenos de superfície celular, marcadores genéticos – advém de estudos com camundongos expostos a altas doses de raios X. Foi observado que os animais que tinham sido expostos a radiação tinham a maioria de suas células hemocitopoéticas destruídas e o animal morria em poucos dias, não produzindo novas células sanguíneas. Porém, o animal sobrevivia quando recebia uma transfusão de células coletadas da medula óssea de um doador saudável, imunologicamente compatível, sendo que algumas das células recebidas tinham capacidade de colonizar o tecido irradiado e “preenche-lo” permanentemente com tecido hemocitopoético.

O primeiro passo é o comprometimento com um destino mieloide ou um linfoide, sendo que cada um destes é capaz de gerar muitos tipos de células diferentes. Uma analogia, embora simples, mas interessante, que podemos fazer é com relação a nossa vida escolar e a de nossos amigos. Embora durante um bom tempo no ensino médio tenhamos convivido com muitos amigos na mesma sala e aprendido os mesmos conteúdos, cada um ao final segue seu próprio destino, sua formação profissional, suas escolhas, umas bem parecidas, outras nem tanto. Assim, nas etapas posteriores da maturação celular surgem as progenitoras comprometidas com a produção de apenas um tipo celular (um destino). As etapas de comprometimento estão correlacionadas com mudanças na expressão de genes e reguladores de transcrição específicos para cada subtipo. Veja a figura a seguir.

Figura 4 – Diagrama mostrando a hierarquia das células sanguíneas no sistema hemocitopoético da medula óssea. Modificado de JulieJenksButteCollege, CC BY-SA 4.0, Em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Hematopoietic_System_of_the_Bone_Marrow.jpg

Outros exemplos: células-tronco neurais e células-tronco musculares

As células-tronco neurais originam tanto neurônios como células da glia, persistem em certas partes do cérebro mamífero adulto, tendo pouca capacidade de autorreparação e são difíceis de serem encontradas. Uma dessas regiões é o hipocampo, uma região relacionada com aprendizagem e memória, especialmente a zona subventricular (ZSV) e a zona subgranular (ZSG) do giro denteado (GD), onde há uma renovação contínua de neurônios. Dependendo das condições de cultivo, e das combinações adequadas de fatores de crescimento, as células-tronco neurais podem ser cultivadas como uma monocamada e induzidas a proliferar como uma população praticamente indiferenciada e depois serem induzidas a originar tanto uma mistura de neurônios como células da glia e em alguns casos até células do sangue. Experimentos com camundongos mostram que estas células apresentam uma boa plasticidade, migração e de ajustar seu comportamento dependendo da localização. Tem potencial para serem utilizadas em transplantes no tratamento de diferentes doenças, como o mal de Parkinson, Alzheimer e a esclerose múltipla.

Finalmente, no músculo especialmente quando este é lesado ou estimulado a crescer, há células semelhantes aos mioblastos chamadas de células-satélite que são ativadas a proliferar, e suas derivadas podem se fundir para reparar o músculo lesado ou para permitir o crescimento muscular. Em condições normais ficam num estado quiescente (inativo), mas quando necessário são ativadas podem se autorrenovar e diferenciar em fibras musculares esqueléticas. Geralmente as células-satélite de indivíduos com distrofia muscular não conseguem acompanhar o aparecimento das lesões e essas células acabam sendo substituídas por tecido conjuntivo formando uma espécie de cicatriz.

 

Tecidos que carecem de células-tronco e reprogramação celular

Até aqui vimos muitos exemplos de manutenção e regeneração celular mediada por populações “dedicadas” de células-tronco. Porém, é possível que células já diferenciadas retornem a um estado indiferenciado, ou ao menos intermediário e tenham propriedades semelhantes às das células-tronco? A resposta é que sim. Em outras palavras a diferenciação não é um processo irreversível. Dado que na diferenciação existe uma ativação e uma inativação gradual de genes por meio de modificações no DNA nuclear e como os núcleos de todas as células diferenciadas continuam contendo os mesmos genes (com poucas exceções), o que pode ocorrer é uma mudança nesses perfis de ativação/desativação, uma reversão dos processos de restrição genômicos, levando a célula a seu estado “original”. Trata-se da desdiferenciação ou reprogramação celular. Os exemplos mais conhecidos são a clonagem do anfíbio Xenopus laevis a partir de uma célula somática e da ovelha Dolly. No primeiro caso, os pesquisadores retiraram o núcleo de uma célula epitelial de girino e transferiram este núcleo para um ovo sem núcleo. Os fatores presentes no citoplasma do ovo deram um reset no núcleo epitelial tornando-o totipotente, gerando um embrião inteiro. No caso da ovelha Dolly, foram necessárias três ovelhas, duas doadoras – uma do ovócito e outra de célula somática de uma glândula mamária – e uma cujo embrião foi implantado depois de cultivado in vitro por um pequeno espaço de tempo. O ovócito teve seu núcleo haploide (n) removido e substituído pelo núcleo de uma célula somática diploide (2n). Desse modo o conteúdo genético da Dolly é igual da mãe doadora de células somáticas. Muitos outros mamíferos também já foram clonados.

Naturalmente há tecidos do corpo que carecem de células-tronco dedicadas e suas células diferenciadas passam por um processo de desdiferenciação, como exemplo os hepatócitos e células do ducto biliar. Normalmente estas células pouco se dividem, porém após uma lesão são capazes de adquirir um estado progenitor bipotencial, a partir do qual eles podem se autorrenovar e dar origem a hepatócitos e células do ducto. Parte do conhecimento da regeneração hepática vem do clássico experimento onde aproximadamente dois terços do fígado de um rato adulto foram removidos (hepatectomia parcial), e após um tempo, foi registrada uma intensa proliferação das células hepáticas restantes, que reconstituem inteiramente a parte que foi segmentada do fígado. Nesse contexto, há autores que não consideram que há uma regeneração em sentido estrito. No fígado do rato, e também no fígado humano, o segmento hepático segmentado não se forma “de novo” como em muitos anfíbios, cuja cauda perdida pode ser reconstituída, mas recupera sua massa (peso ou volume), sem recuperar sua forma original. Tal proliferação ocorre por elevada síntese de DNA e liberação de fatores de crescimento como Fator de Crescimento do Hepatócito (HGF), Fator Transformador do Crescimento-alfa (TGF-α) e outros. Outro exemplo são as células secretoras de insulina (células b) do pâncreas cuja renovação normalmente se dá por duplicação simples das células secretoras de insulina já existentes. Falhas nesse processo podem levar ao surgimento de diabetes. Por fim, o epitélio auditivo e o epitélio da retina não possuem células-tronco, e suas células receptoras sensoriais até onde sabemos são insubstituíveis.

Figura 5 – Desdiferenciação em células do fígado (Baseado em MUÑOZ-CÁNOVES & HUCH, 2018). (Crédito: Isaias Cavalcante de Oliveira)

Linhas de Pesquisa Atuais

Grande parte dos estudos e experimentos realizados envolvem as células-tronco embrionárias (CTEs, no inglês ESCs – embryonic stem cells) e as células-tronco pluripotentes induzidas (CTPIs, no inglês iPSCs – induced pluripotent stem cells). No primeiro casos desafios ao uso incluem as questões éticas relacionadas ao uso de embriões humanos e rejeição imunológica após o transplante, sendo que tais células-tronco embrionárias são desenvolvidas a partir de óvulos fertilizados in vitro em uma clínica, não de óvulos fertilizados in vivo. Buscando solucionar esses problemas, vários grupos têm tentado gerar CTEs a partir de células somáticas do próprio paciente por meio de transferência nuclear, como ocorreu com a ovelha Dolly. No Brasil em particular, há a Lei de Biossegurança (nº 11.105/2005), que normatiza pesquisas com embriões humanos. O artigo 5º permite tais pesquisas, mas estabelece duas condições: i) os embriões devem ser inviáveis para reprodução e ii) devem estar congelados há mais de três anos, sendo que é necessário o consentimento dos genitores e tais pesquisas precisam ser aprovadas pelos comitês de ética.

O segundo caso consiste em células de organismos adultos que, através da expressão de fatores de transcrição específicos retornam a um estado pluripotente. Isso porque a pluripotência pode ser induzida em células somáticas por fatores definidos que existiam em CTEs, é basicamente dar um reset na célula e depois “informar”, especificar qual linhagem ela vai se tornar. Há fatores conhecidos como – Oct3/4, Sox2, Klf4 e cMyc – que foram capazes de induzir pluripotência em fibroblastos fetais e adultos de camundongos. Embora os fibroblastos sejam os mais utilizados, outras células são estudadas: células sanguíneas periféricas, queratinócitos, células epiteliais renais entre outras. As maiores dificuldades na utilização dessas células está em uma de suas características mais importantes – seu potencial de proliferação infinita. Embora, com um pequeno número de células possamos preparar um elevado número de vários tipos de células humanas, caso as células continuem  proliferando mesmo após o transplante, podem resultar em tumores ou teratomas – tumor formado a partir de células germinativas. A tumorigenicidade pode ocorrer por mutações genéticas que ocorreram durante a cultura in vitro, por padronização incorreta – mistura de células indiferenciadas/imaturas com produtos de células de linhagens diferentes – ou se os fatores de reprogramação permanecerem ativos nas células. Outra questão a se considerar é a imunogenicidade. As CTPIs criadas a partir das próprias células dos pacientes são uma ótima oportunidade para um potencial transplante autólogo com células-tronco pluripotentes. No entanto, a imunogenicidade das CTPIs também é alvo de questionamentos em alguns estudos em camundongos.

Figura 6 – Comparação entre células-tronco embrionárias e células-tronco pluripotentes induzidas (Baseado em Zakrzewski et al., 2019). (Crédito: Isaias Cavalcante de Oliveira)

Transplantes para tratamento da retina

Um estudo com CTPIs autólogos buscando regeneração de células da retina (regeneração macular) relacionada à idade tem evidências de que as células transplantadas, detectadas por análises de imagem mais de dois anos após a cirurgia, não apresentaram rejeição. Desse modo fornecem uma oportunidade para terapia celular livre de rejeição. Também foi descoberto que o transplante autólogo de epitélio pigmentar da retina derivado das CTPIs resulta em uma melhora na visão em animais modelo de degeneração macular relacionada à idade, e atualmente está sendo testado em humanos. Contudo, as abordagens alogênicas – quando envolve um indivíduo doador – são preferidas devido a considerações de custo de produção (tanto em dinheiro quanto de tempo).

Terapias com células-tronco hemocitopoéticas (CTHs) e mesenquimais (CTMs)

As CTHs correspondem a uma linhagem cuja aplicação clínica é a mais bem sucedida até o momento. As células-alvo são geralmente derivadas da medula óssea – bem conhecidas por expressarem o antígeno CD34 -, sangue periférico ou sangue do cordão umbilical. O procedimento pode ser autólogo, alogênico ou singênico (de um gêmeo idêntico). Milhões de doadores estão registrados em bancos mundiais de medula óssea. Como vimos tais células podem gerar eritrócitos, leucócitos e plaquetas e podem ser úteis no tratamento de doenças como leucemia e anemia, problemas de coagulação sanguínea, imunodeficiências e outros. Mas, podemos pontuar algumas coisas: Há um número limitado de células para transplante e têm se estudado uma forma eficiente de reuni-las. Também existem dificuldades em encontrar indivíduos compatíveis, e qualquer contaminação (por exemplo, a viral) também causam uma redução na eficiência dos transplantes convencionais de CTH. O transplante autólogo neste caso aumenta significativamente o sucesso do procedimento.

Além disso, estudos têm identificado também no sangue periférico a presença de células-tronco mesenquimais (CTM). O que é bem interessante do ponto de vista medicinal e terapia celular, pois tais células apresentam as mesmas características e marcadores de superfície que as células-tronco mesenquimais da medula óssea e são capazes de diferenciação em células do tecido conjuntivo como osteócitos, condrócitos, adipócitos e miócitos. Além disso, são também encontradas no tecido muscular e adiposo e têm sido estudadas no tratamento de lesões musculares como as distrofias e no processo de cicatrização. Estas últimas (do tecido adiposo) tem atraído a atenção de pesquisadores por apresentarem maior taxa de proliferação celular que as da medula óssea e o procedimento de coleta ser mais fácil. No entanto, são necessárias mais pesquisas e o desenvolvimento de metodologias e procedimentos eficazes de isolamento e manipulação dessas células e sua aplicação.

Terapias baseadas em células

Podem ser utilizadas em situações em que órgãos e tecidos são danificados ou destruídos e quando as doações de tecidos e órgãos para transplante não alcançam as demandas. O diabetes tipo 1 é uma doença causada por problemas na produção ou na absorção de insulina, e isso ocorre devido a distúrbios no sistema imunológico que ataca as células que produzem a insulina. Como alternativa à terapia de transplante, pode ser possível induzir células-tronco a se diferenciarem em células produtoras de insulina. Outras condições mais comuns que se beneficiam dessa terapia são acidentes vasculares cerebrais, osteoartrite, doenças neurodegenerativas e pacientes com doenças cardíacas.

“Rejuvenescimento” por reprogramação celular

O envelhecimento é um processo que ocorre naturalmente nos seres vivos, especialmente nos animais. As células de indivíduos idosos apresentam mudanças transcricionais, altos níveis de estresse oxidativo, mitocôndrias disfuncionais e telômeros mais curtos do que em células jovens. Há estudos que propõem que quando as células somáticas adultas são reprogramadas sua “idade epigenética” zera. Alguns dos genes envolvidos nesse processo são Oct4, Sox2, Klf4 e C-myc (genes OSKM) estudados em células pancreáticas e células musculares esqueléticas, que têm baixa capacidade regenerativa. Desse modo possíveis aplicações seriam visando retardar a taxa de envelhecimento e o surgimento de doenças relacionadas à idade e quem sabe o rejuvenescimento gradual de indivíduos idosos. Mas, ao mesmo tempo levanta questões éticas envolvendo expectativa de vida, superpopulação e riscos associados.

Conclusão

A intenção aqui não é esgotar as aplicações das células-tronco mas apresentar um panorama geral e as principais pesquisas, permitindo que você possa conhecer e analisar criticamente os principais desafios e conquistas no âmbito medicinal, terapêutico e do funcionamento das CTs. Esperamos também que esse módulo tenha contribuído em seus conhecimentos sobre embriogênese, diferenciação e reprogramação celular. Para finalizar ainda podemos citar o uso das células-tronco envolvendo lesões medulares, insuficiência cardíaca, rupturas de tendões na criopreservação e autotransplante de tecido testicular, no transplante de células epiteliais amnióticas humanas (hAEC) para o tratamento de falência ou insuficiência ovariana prematura em mulheres sobreviventes de câncer, células-tronco em tecidos dentais com propriedades osteogênicas e condrogênicas, entre muitos outros. Vale a pena pesquisar.

 

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